Sete argumentos em favor da língua portuguesa

'« (...) A posição que aqui se defende não é contra a língua inglesa – língua hipercentral da atualidade, sem margem para dúvidas ou discussões –, mas em favor da língua portuguesa, língua supercentral. (...)  »'


INTRODUÇÃO

Foram apresentados, no passado mês de novembro, os dados relativos aos inscritos no ano letivo de 2021/2022 no ensino superior em Portugal, da responsabilidade da Direção Geral de Estatísticas de Educação e Ciência1. O número de estudantes estrangeiros inscritos no ensino superior português foi apresentado na Universidade do Minho, a 24 e 25 de novembro p.p., no âmbito da conferência “Será o nosso ensino superior inclusivo?”, promovido pelo consórcio Universities Portugal. O jornal Público concedeu destaque a este evento, com um artigo de página inteira2. No artigo, é reservado espaço para discutir “O factor língua”, que é analisada sob duas perspetivas negativas: 1) como justificação para o facto de a maior percentagem de estudantes estrangeiros em Portugal provir de países de língua oficial portuguesa, que só escolhem Portugal devido ao fator língua; 2) como entrave à atração de estudantes de outras nacionalidades, dando-se como fatores paliativos a intercompreensão entre português e espanhol (que pode atrair estudantes de países hispanófonos) e o facto de ser crescente o número de universidades portuguesas a fornecerem cursos em inglês.
Contrariamente ao que é sugerido na peça jornalística, talvez dando voz às preocupações do consórcio Universities Portugal, a língua portuguesa não tem de ser e não é um entrave à internacionalização ensino superior, mas antes, se houver uma boa coordenação entre as políticas de internacionalização da língua e do ensino superior, ambos terão a ganhar reciprocamente e, em última instância, ganharemos todos nós.


Nesta exposição, pretendo demonstrar que o uso da língua portuguesa no ensino superior português não só se justifica, como pode constituir um estímulo à internacionalização do ensino superior português. Para o fazer, aduzirei sete argumentos em favor do uso da língua portuguesa no ensino superior em Portugal, com o objetivo de lançar a discussão deste painel. Muitos mais argumentos poderiam ser usados, mas sete pareceu um número adequado para os propósitos deste exercício.
Antes de prosseguir, importa ressalvar que, neste exercício, não se pretende negar as virtudes do uso da língua inglesa no ensino de um conjunto restrito de áreas científicas e tecnológicas mais procuradas pelos estudantes estrangeiros. A posição que aqui se defende não é contra a língua inglesa – língua hipercentral da atualidade3,  sem margem para dúvidas ou discussões –, mas em favor da língua portuguesa, língua supercentral.
 
1.  A crescente dimensão demográfica do português

Começarei com este argumento, que é geralmente o mais badalado para promover a importância do português à escala global e que, pensado isoladamente pode ser entendido como frágil, mas cuja evocação não é despicienda nesta discussão, como pretendo demonstrar.

É sabido que o português é uma das línguas mais faladas do mundo e atualmente a mais falada no hemisfério sul. Sabemos, ainda, que as previsões de crescimento demográfico (anteriores à pandemia) apontam para que o português venha a ser falado, no final do século XXI, por aproximadamente 490 milhões de pessoas, especialmente no continente africano.
 
É certo que não é linear que todos os habitantes de países de língua portuguesa sejam falantes de português. Antes da independência dos países africanos de língua portuguesa havia nesses territórios uma percentagem muito mais baixa de falantes de português, percentagem que tem vindo a aumentar ao longo das últimas décadas, especialmente em países como Angola e Moçambique, onde é progressivamente usado como língua materna, especialmente por falantes mais jovens, nos meios urbanos.

O previsível desenvolvimento desses países virá necessariamente acompanhado de migração para grandes centros urbanos, onde o português funciona como língua veicular, e de escolarização maciça da população, previsivelmente em português. É, portanto, de esperar que o número de falantes proficientes de português, letrados e com níveis de escolaridade significativos cresça exponencialmente ao longo do século. Este crescimento traz, por si só, perspetivas de crescimento para o ensino superior ministrado em língua portuguesa, também em Portugal.
A adoção maciça do inglês no ensino superior português significaria, assim, excluir desse ensino os estudantes destes países das universidades portuguesas e cercear o potencial de crescimento que esta circunstância traz ao ensino superior em Portugal.
 
2.  As implicações e responsabilidades de Portugal 

O Brasil é independente há 200 anos, Timor-Leste apenas há 20, e a independência dos cinco países africanos que efetivamente têm a língua portuguesa como língua oficial e de estado5 ronda os 50 anos de idade.

No caso dos países africanos de língua oficial portuguesa, a  explicação da escolha do português como língua oficial pode ser encontrada em fatores como os seguintes: a) a maioria desses países é constituída por uma população multiétnica, multicultural e, necessariamente multilingue, pelo que o português funcionaria como língua de coesão nacional; b) o português era, à época (anos 1960-1970), uma língua descrita e codificada, detentora, portanto, de recursos linguísticos que, embora parcos, eram imprescindíveis ao seu ensino e uso em contexto político-administrativo e educativo, pelo que a sua adoção como língua oficial facilitaria e permitiria acelerar o difícil processo de construção dos novos estados; c) grande parte da elite intelectual e política desses países havia estudado em Portugal; d) o português havia já sido língua global e, até meados do século XX, fora língua importante de produção e difusão científica, tecnológica e cultural em algumas áreas relevantes do saber (e.g. na náutica e transportes marítimos)6  e era usada em fóruns internacionais; 5) no caso de Timor-Leste, o português constituía não apenas a língua da resistência, como, a par da religião católica, elemento-chave para a construção da identidade nacional do jovem país.

A adoção do português como língua oficial por parte destes países significou, por um lado, a abertura de um enorme potencial de crescimento e de afirmação internacional para esta língua, assim como de constituição de um bloco político-diplomático relevante na comunidade internacional, potencialidade que veio a consolidar-se com a criação da CPLP. Essa adoção trouxe, porém, responsabilidades acrescidas para Portugal: a responsabilidade de continuar a contribuir para o desenvolvimento desses países, em particular para o seu desenvolvimento social, educativo e científico.

O uso do português como língua de ensino superior decorre, assim, também das responsabilidades de Portugal ter sido um império colonial, condição que as autoridades portuguesas não negam nem escondem.  

A adoção do inglês, excluindo do ensino superior português os estudantes destes países, constituiria a denegação mesmo da nossa história e das responsabilidades que o passado colonial português comporta. 
 
3.  O português como língua supercentral no sistema global das línguas

Em 2001, na obra Words of the World, Abram de Swaan propõe que o «sistema global das línguas» é parte integrante do «sistema mundial», e que este, além da linguística, comporta uma dimensão política, uma económica e uma cultural. Propõe ainda que o sistema global das línguas se organiza em constelação, cujo centro é atualmente ocupado pelo inglês, língua hipercentral. Em torno do inglês gravitam 12 línguas supercentrais (alemão, árabe, chinês, espanhol, francês, hindi, malaio, português, russo e suaíli), de âmbito internacional, e todas, à exceção do suaíli, com mais de cem milhões de falantes cada. Em torno das línguas supercentrais, gravitam cerca de cem línguas centrais, em conjunto faladas por cerca de 95% da população mundial, que têm em comum o serem frequentemente «línguas nacionais» (national languages, segundo o autor), por vezes oficiais dos países ou regiões onde são faladas, de registo escrito, usadas na comunicação, na política, na administração, na justiça e no ensino. Finalmente, as línguas periféricas ou minoritárias, provavelmente mais de seis mil, constituem cerca de 98% das línguas existentes, mas são, em conjunto, faladas por cerca de 10% da população mundial, línguas de memória, com escassa tradição escrita. 

Para Swaan, este sistema assenta no multilinguismo e na capacidade mediadora das línguas, i.e., grande parte da população mundial fala mais do que uma língua, pelo menos duas, de "órbitas" diferentes. Os falantes de uma língua periférica usam em geral uma língua central, quando necessitam de comunicar com falantes de outra língua periférica; os falantes de línguas centrais diferentes recorrem a uma língua supercentral como veicular; e, por fim, o inglês é veicular para os falantes de línguas supercentrais diferentes. A veicularidade constitui-se, portanto, como importante mais-valia para as línguas.

Este modelo de sistema global das línguas é útil para enquadrar a reflexão sobre políticas linguísticas, particularmente profícuo para a caracterização do lugar do português7. Enquanto língua supercentral, o português é uma língua de âmbito internacional (oficial de nove países e da Região Administrativa Especial de Macau), falada em todos os continentes, gravita em torno do inglês (atualmente a língua global de produção e difusão de conhecimento). Ao mesmo tempo, o português constitui o centro de uma constelação mais restrita, em torno do qual gravitam «línguas nacionais», e.g. as principais línguas de Angola ou Moçambique, com função veicular. Em linguagem política, o português é «língua de unidade nacional» para vários países. É também uma língua pluricêntrica.

Dada a sua posição, cabe ao português o papel de funcionar como língua mediadora entre o inglês e as línguas centrais ou periféricas, presentes nos países de língua portuguesa e maternas para partes significativas da população. 

A adoção do inglês significaria não apenas excluir os estudantes destes países das universidades portuguesas, como, ainda, obstar à sua participação no desenvolvimento científico e cultural mundial, visto que o inglês não é veicular para a generalidade da população desses países.
 
4.  A certificação da proficiência em português no ensino superior 

Durante a preparação do meu doutoramento, na década de 1990, obtive uma bolsa do estado francês, ao abrigo de um protocolo de parceria Portugal-França, para permanecer alguns meses na Universidade de Lille. Na altura, só não me foi exigida certificação de proficiência linguística em francês, implicando a realização de um exame específico, por ser eu detentora de licenciatura em línguas e literaturas modernas com a variante de francês e por ser professora com habilitação própria, profissionalizada, para o ensino desta língua nos ensinos básico e secundário.

De resto, é sabido que para realizar estudos de ensino superior em países europeus com os quais gostamos de nos comparar (e.g. Espanha, França, Alemanha, Inglaterra) é imprescindível apresentar certificação de proficiência nas línguas desses países. E.g., foi essa necessidade que levou ao crescimento do ensino de língua espanhola em Portugal (e à sua entrada como língua estrangeira de opção no currículo nacional), durante os anos 1990 e 2000, pois muitos dos candidatos aos cursos de Medicina em Portugal, com um numerus clausus muito restrito, encontravam em Espanha a possibilidade de cursar a formação da sua preferência. 

Para estudar em Portugal, no entanto, parece não ser necessário saber português, dada a ausência do requisito de certificação linguística nos editais da maior parte dos concursos para a admissão em cursos do ensino superior9,  ainda que o sistema de certificação linguística português conte com mais de 20 anos de existência10.  E.g. só em 2022 a ULisboa decidiu obrigatória tornar a certificação de proficiência linguística equivalente a B2 (QECR) em português para admissão dos estudantes estrangeiros aos cursos de 1.º e 2.º ciclos.  

Neste como em muitos outros casos, poderíamos aprender com o que se faz no Brasil desde 1994 com o programa CELPE-Bras,   obrigatório desde então para admissão ao ensino superior por parte de estrangeiros, se não cultivássemos o medo da “sul-americanização” do ensino superior em Portugal, seja isso o que for. 

A ausência deste requisito na maioria das condições de acesso ao ensino superior, que é entendido como crucial pelos países que connosco competem pela atração de estudantes estrangeiros, denota, entre outros aspetos que poderiam ser aqui mencionados, um desconhecimento ou uma menorização do papel que o português desempenha a nível global, assim como um descaso pela língua portuguesa e pela identidade nacional.

Passasse este requisito a ser obrigatório para admissão aos cursos de ensino superior em Portugal e assistiríamos certamente a um crescimento expressivo do número de estudantes de português como língua estrangeira e, ainda, das competências globais desses estudantes.  
 
5. O crescimento da aprendizagem do português língua não materna  

O enunciado Eppur si muove! (em português, «e, ainda assim, mexe-se!») terá sido produzido por Galileu Galilei, em 1613, após ter sido obrigado a renegar a sua tese de que é a Terra que se move em torno do Sol. Esta referência é-nos suscitada pelo retrato negro da língua portuguesa, traçado na peça do Público supracitada, que a apresenta como um entrave à internacionalização do português, retrato que contrasta de forma gritante com o interesse internacional pela língua portuguesa e sua aprendizagem. Dito de outro modo, apesar da visão negativa que parece perpassar no pensamento das nossas autoridades universitárias, a verdade é que o número de estudantes estrangeiros que estudam português como língua não materna não para de crescer em Portugal e no estrangeiro.

Infelizmente, ao contrário do que seria de esperar, foi impossível encontrar, nas páginas e documentação dos organismos responsáveis por esta área em Portugal, nomeadamente o Camões I.P., dados disponíveis. 

Dados obtidos junto do CAPLE, mostram um expressivo crescimento do número de exames aplicados entre 2019 e 2022, de 5479 em 2019 para 5999, em 2019, crescimento de cerca de 10%, apenas interrompido em 2022, devido à pandemia de covid-19. Os mesmos dados mostram ainda as motivações para a realização do exame em 2022, sendo as mais importantes a aquisição da nacionalidade (2105 provas) e a prossecução de estudos (1761 provas).   

Por seu turno, o IILP republicou, em 2019, uma notícia do Mundo Português,  na qual são fornecidos dados da época apresentados pelo então presidente do Camões I.P., Embaixador Luís Faro Ramos, durante a apresentação da Rede do Ensino Português no Estrangeiro (EPE) para o novo ano letivo 2019/2020. Nesse ano, o número de estudantes enquadrado na EPE era de 72 244 alunos, representando, de acordo com o texto, um acréscimo de 1400 alunos.

A dificuldade em encontrar dados fiáveis, fornecidos pelas instituições ou por entidades independentes, deixa claro aquilo que considero a inexistência de qualquer estratégia clara, a nível nacional, para a gestão da língua, assim como a falta de compreensão, por parte dos responsáveis e governantes atuais, do verdadeiro potencial de desenvolvimento que a língua portuguesa constitui para o país e para a sociedade. Inevitável se torna pensar eppur si muove, ou eppur si ingrandisce (e, ainda assim, cresce), quando pensamos em tanto descaso.
 
6.  A essencialidade da língua portuguesa no ensino de algumas áreas

Como afirmado acima, a posição defendida neste documento não visa a proposta de abolição do uso de língua inglesa no ensino de algumas áreas de especialidade que dizem respeito a áreas do conhecimento muito globalizadas e para cujos profissionais seja pouco provável o contacto com o público ou o desempenho de atividades de âmbito social (e.g. educação, saúde, segurança). Do mesmo modo, não deve entender-se este documento como um ataque à língua inglesa (que teria tanto de inútil, quanto de ridículo), mas apenas uma recusa de qualquer forma de monopólio linguístico que ponha em causa as demais línguas, assim como a cidadania, o bem-estar e as perspetivas dos indivíduos que as falam.

Aquilo que se defende explicitamente é:
  • que a língua inglesa no ensino universitário seja entendida apenas como uma ferramenta ao serviço da expansão do conhecimento e não como panaceia para garantir o futuro das universidades;
  • que não existam cursos superiores integralmente ensinados em inglês, i.e., mesmo em situações em que se opte pela língua inglesa como língua predominante de ensino, sejam incluídas nos currículos UC lecionadas em português;
  • que as universidades determinem que os seus estudantes estrangeiros devam adquirir proficiência certificada em língua portuguesa, como parte da sua formação em Portugal, constituindo esta proficiência numa das línguas mais faladas do mundo uma mais-valia pelo facto de terem escolhido Portugal para a realização de estudos.
Além disso, entendemos que existem áreas de conhecimento que requerem que o seu ensino seja feito em português, e.g. Direito, Serviço Social, Medicina, Enfermagem, Literatura(s) em língua portuguesa, Cultura(s) de língua portuguesa, Língua portuguesa, Linguística, História, Educação e Ensino.
Criar cursos exclusivamente lecionados em inglês é um incentivo relevante à emigração dos diplomados. Tal medida, alimentaria o sistema perverso que se instalou em Portugal, especialmente desde 2011, pelo qual a sociedade portuguesa suporta os custos de formação dos quadros de que o país carece para o seu desenvolvimento, diplomados que contribuem, ao invés, para o desenvolvimento de outros países e sociedades concorrentes da nossa. 

Ao ensino superior público, financiado pelo Estado e que recebe apoios deste, não deveria ser permitido alimentar este sistema.
 
7.  Os desafios da pluricentricidade da língua portuguesa 

Muhr (2016), tomando por base a proposta de Clyne (1992), especifica que uma língua pluricêntrica é uma língua que é usada em pelo menos duas nações, nas quais tem estatuto oficial, como língua do estado, colíngua de estado ou língua regional, com normas (codificadas), que normalmente contribuem para o reforço da identidade nacional ou pessoal, tornando cada nação um centro produtor de norma, pelo uso deliberado das suas normas específicas.

A situação do português no início do século XXI poderia ser descrita como existindo duas variedades-padrão nacionais estabilizadas, com normas codificadas, a do Brasil e a de Portugal, que constituem as variedades dominantes do português, e seis outras potenciais variedades nacionais (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe Timor-Leste), com diferentes graus de implantação entre a população, reconhecimento e descrição.

Ao longo deste século, a situação linguística de vários países de língua oficial portuguesa tem evoluído. Angola e Moçambique, em particular, têm assistido a um crescimento exponencial do uso português não apenas como língua segunda, mas também como língua materna, que vem acompanhado da inevitável nativização do português, traduzida na emergência de uma variedade nacional para cada país, embora ainda não estabilizada e codificada. Os dois países apresentam, no entanto, posturas bem diferenciadas relativamente à sua variedade nacional do português: em Moçambique, assiste-se ao reconhecimento coletivo da existência de uma variedade moçambicana da língua portuguesa, fator relevante para a definição da ‘moçambicanidade’;  ao contrário, em Angola, assiste-se a um discurso oficial que rejeita o inevitável desenvolvimento de uma variedade nacional própria, não a reconhecendo e reportando-se sistematicamente ao português europeu como variedade-padrão. Em São Tomé e Príncipe, com índices de escolarização em português próximos dos 100%, a emergência de uma variedade nacional é aceite e reconhecida como fator positivo e determinante para a consolidação da identidade nacional, embora careça ainda, a meu ver, de descrição suficiente, codificação e assunção pelo Estado18.  A situação dos restantes países de língua portuguesa é menos propícia à emergência e estabilização de variedades nacionais próprias19. 

Na sociedade portuguesa parece existir um desconhecimento generalizado relativamente a esta situação e, no entanto, a realidade impõe-se.

A assunção, pelo Estado português, da condição de pluricentricidade do português extravasou o âmbito da comunicação formal portuguesa e da CPLP e passou à comunicação pública em Portugal, nomeadamente com a publicação, em 5 de maio de 2021, do artigo “O valor global da língua portuguesa”, assinado por quatro ministros então em funções. No texto se diz explicitamente: 
 
Ele [o português] foi proclamado pela UNESCO, na sequência da ideia proposta pelo embaixador António Sampaio da Nóvoa e logo acolhida pelos representantes dos países de língua portuguesa aí acreditados; assim se conferindo alcance global ao Dia da Língua Portuguesa e da Cultura na CPLP, criado em 2009. Fica, portanto, bem afirmada a tripla pertença da nossa língua: nossa porque a falamos; nossa porque a partilhamos com os demais países e regiões que a escolheram como língua oficial; e nossa porque é do mundo que também a nós pertence. (...)
Os dados de base são conhecidos: a língua de Pessoa e Guimarães Rosa encontra-se entre as mais faladas e as que mais crescem no mundo; usa-se em todos os continentes e é a mais frequente no hemisfério sul. É uma língua pluricêntrica, com diversas variedades de igual valor. 
[sublinhado meu]
A. Santos Silva, M. Heitor, T. Brandão Rodrigues e G. Fonseca20 
 
A pluricentricidade do português existe e levanta problemas acrescidos, políticos, educativos21 e sociais. Por isso mesmo, carece da tomada de medidas urgentes, de forma a ser assimilada e respeitada. A nível universitário, a existência de diferentes variedades nacionais do português, umas estáveis e outras emergentes, coloca desafios importantes, que se prendem com a definição de comportamentos e atitudes dos docentes universitários relativamente a esta realidade. São conhecidos inúmeros testemunhos de estudantes provenientes de países língua oficial portuguesa, que são discriminados pelo uso que fazem da língua e obrigados a falar ou a escrever “em português” (leia-se, português europeu). 
A meu ver, o descaso das universidades relativamente a esta questão traz prejuízos claros e determinantes não só para os estudantes afetados, como para o prestígio das próprias escolas e do ensino superior em Portugal. 
 

CONCLUSÃO

Que o ensino superior em Portugal seja ministrado em língua portuguesa é tão óbvio que quem venha a ler este texto daqui a umas décadas certamente achará este exercício completamente ocioso e absurdo. E, no entanto, aqui estamos, neste fórum, a discutir a questão junto das mais altas autoridades responsáveis pelo ensino superior em Portugal.
Achar que a língua portuguesa é um entrave à internacionalização do português parece-me revelar profundo desconhecimento da história, nomeadamente da história das línguas, assim como dos mecanismos de produção, elaboração e aquisição de conhecimento e sua relação com a linguagem. Parece-me revelar também baixo amor-próprio e vergonha daquilo que somos. Achar que ter como sua uma das línguas mais faladas e com maior vitalidade do mundo possa constituir um escolho (e não um continente de oportunidades para os que a falam) é tão despropositado que não se esperaria que a ideia ocorresse a alguém.
A supremacia do inglês é circunstancial e finita, como foi a de outras línguas hipercentrais do passado. Da universidade espera-se que seja capaz de se projetar para um futuro que vá além do imediato e que constitua verdadeiro motor de criatividade e inovação da sociedade que a sustenta, sem desprezar os seus valores mais preciosos. A língua é seguramente um deles. 



1 DGEEC. (2022). Principais resultados do RAIDES 21. Relatório disponível em https://www.dgeec.mec.pt/np4/EstatVagasInsc/, consultado em 28 de novembro de 2022.
2 Público, 26 de novembro de 2022, p. 22.
3 Cf. o ponto 3) neste documento.
4 Reto et al., 2018.
5 Fazem parte desta lista Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Excluo intencionalmente da lista, neste trabalho, a Guiné Equatorial, cuja adoção da língua portuguesa como oficial constituiu, a meu ver, uma estratégia política circunstancial do país, sem grandes efeitos a longo prazo.
6 O caso dos domínios da náutica e dos transportes marítimos configura um caso claro do que em sociolinguística se denomina como domain loss (perda de domínio), conceito definido por Sanden, 2020 do seguinte modo: «O conceito de “perda de domínio” implica que a língua assume o papel de principal língua usada num campo específico tradicionalmente dominado pela língua local de comunicação. Como resultado, a língua local deixa de ter a capacidade de desenvolver o vocabulário necessário para uma comunicação bem-sucedida» [tradução minha].
7 Este argumento foi por mim usado em artigo de opinião – cf. "O português na encruzilhada", Expresso e Ciberdúvidas, 2013). É ainda evocado na obra O potencial do português como ativo global (Reto et al, 2020).
8 Não se nega a existência da intercompreensão entre português e espanhol na comunicação. Porém, em situações de comunicação formal relevantes, a intercomunicação não só não é suficiente, como o registo discursivo que daí resulta (entre nós conhecido como portunhol) não é aceitável, sendo imprescindível o domínio de ambas as línguas.
9 Esta afirmação baseia-se em inquérito levado a cabo junto das direções de curso de pós-graduação das universidades e institutos politécnicos portugueses, levado a cabo em 2020, no âmbito de uma dissertação de mestrado em Português como Língua Estrangeira / Língua Segunda (FLUL), infelizmente não concluída; dados preliminares do inquérito foram apresentados em comunicação ao III SINEPLA (Simpósio Internacional sobre Português como Língua Adicional, Coimbra, FLUC, 2021) Cf. Mou; Gaspar; Correia; Kuhn (2021).
10 O programa de certificação de competências em português como língua estrangeira de Portugal, CAPLE (Centro de Avaliação e Certificação de Português Língua Estrangeira), foi criado em 1999. Trata-se da única entidade portuguesa que avalia e certifica as competências escritas e orais em português como língua estrangeira (PLE) para diferentes efeitos: estudos, acesso à carreira académica, trabalho em diferentes domínios de atividade, aquisição da cidadania portuguesa, etc. (https://caple.letras.ulisboa.pt/pagina/1/caple, consultado a 29 de novembro de 2022).
11 https://www.ulisboa.pt/info/concurso-para-estudante-internacional-1o-e-2o-ciclos, consultado a 29 de novembro de 2022.
12 O programa do Brasil, CELPE-Bras (Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros), foi criado em 1994, especificamente «para atender às necessidades de seleção de estudantes que participariam do Programa de Estudantes Convênio de Graduação (PEC-G)» - (https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/avaliacao-e-exames-educacionais/celpe-bras, consultado a 29 de novembro de 2022). Existe bibliografia abundante sobre os efeitos da criação e aplicação do CELPE-Bras, da qual destacamos Scaramucci, 2011; Scaramucci, 2012; Schlatter et al., 2009; Schoffen et al. (2017).
13 Em 2016, a Comissão Científica do Programa de Português como Língua Estrangeira / Língua Segunda (PPLE/L2) da FLUL tornou obrigatória, para os estudantes não cidadãos de países de língua oficial portuguesa, a apresentação de certificado (português ou brasileiro) de proficiência linguística em português, de nível C1 ou médio superior no momento da candidatura. Efeitos retroativos desta medida são relatados em Gaspar & Correia, 2021. 
Também a FLUP, determina que cidadãos nacionais e estrangeiros titulares de uma licenciatura obtida em universidade estrangeira com componente de estudos portugueses, realizem «prova de proficiência em Língua Portuguesa de Nível Avançado (equivalente ao DUPLE do CAPLE)» (https://sigarra.up.pt/flup/pt/cur_geral.cur_view?pv_curso_id=449, consultado a 4 de dezembro de 2022); esta obrigatoriedade é, a meu ver, tanto mais compulsiva e inevitável quanto este curso de mestrado é «reconhecido ao abrigo do artigo 54º do Estatuto da Carreira Docente (Decreto-Lei nº15/2007, de 19/01), regulamentado pela Portaria nº334/2008, de 30/04, para os grupos 200 (Português e Estudos Sociais/História) e 300 (Português).»
14 Agradeço à Diretora do CAPLE, Nélia Alexandre, o envio destes dados aquando da escrita deste texto.
15 https://www.mundoportugues.pt/2019/10/01/ensino-portugues-no-estrangeiro-chega-a-187-mil-alunos-este-ano/, consultado a 4 de dezembro de 2022.
16 Relativamente ao Brasil, importará pesquisar a página da Rede Brasil Cultural (http://redebrasilcultural.itamaraty.gov.br/menu-a-rede/menu-apresentacao, consultado a 4 de dezembro de 2022), «instrumento do Ministério das Relações Exteriores para a promoção da língua portuguesa e da cultura brasileira no exterior.»
17 Atente-se, e.g., em Machungo & Firmino, 2022.
18 Consulte-se a este respeito o trabalho de Cosme, 2022.
19 As afirmações feitas nos últimos parágrafos retomam ideias desenvolvidas em Correia, 2022.
20 Público, 5 de maio de 2021. https://www.publico.pt/2020/05/05/culturaipsilon/noticia/valor-global-lingua-portuguesa-1915060
21 Consulte-se a este respeito Correia, ed., 2021.  
 
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Fonte
Comunicação lida pela linguista e professora universitária portuguesa  Margarita Correia para o Encontro Nacional Universidade: chave para o futuro Lisboa, realizado no ISCTE, em 7 de dezembro de 2022.
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in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/artigos/rubricas/idioma/sete-argumentos-em-favor-da-lingua-portuguesa-no-ensino-superior-em-portugal/5086?fbclid=IwAR0B4JAM5MuAu77JtedlHQVFLQrNbq6PJcLvipl1kFrhGxKbgJAM_aAaSYQ# [consultado em 23-01-2023]

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